Quantas vezes a Igreja, na sua história, se viu
obrigada a rever posições e a pedir desculpas pelos seus pecados?
Lemos com alegria que o Papa
Francisco, mais uma vez, foi a uma zona do mundo que, em boa hora, está a
deixar de ser uma franja para passar a ocupar o lugar que lhe é devido. Aí constatou
a gritante situação de pobreza de milhões de pessoas – sobretudo das mulheres.
A forma obsoleta e iníqua com que nos organizamos a nível internacional em
termos económicos e políticos, tantas vezes sublinhada pelo próprio Francisco –
metade da riqueza mundial nas mãos de 1% da população!
Francisco sabe, porque já demonstrou, que é uma pessoa
intelectualmente honesta, uma qualidade demasiadamente rara nas elites
religiosas, que está mais que analisado, estudado e avaliado que a maioria dos
pobres tem cara de mulher e que essa pobreza ocorre maioritariamente entre as
mulheres não por mero acaso. Estão excluídas do poder, e o que é mais grave,
também do poder religioso, pois este deveria ser o primeiro a dar o exemplo de
justiça e igualdade, tão ansiado pelo divino. São objecto de discriminação no
acesso à saúde, à educação, à formação, aos direitos humanos, em suma. São as
principais vítimas de violência sexual, de violência psicológica, de violência
bruta, como aliás é reconhecido na exortação papal A Alegria do Evangelho:
“Duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão,
maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de
defender os seus direitos.” (para 212). O PÚBLICO de 19 de Janeiro fala das Filipinas como
uma ilha de catolicismo no continente asiático; descreve como o povo clamou
contra a corrupção e contra a injustiça – que os assola há décadas. Mas será
adequado referir as Filipinas como um país católico? Tendo em conta que
está organizado de uma forma profundamente não-cristã, tudo ao arrepio da
mensagem evangélica?
Perante os catastróficos cenários filipinos com que se
confrontou e que aliás referiu por diversas vezes, tenhamos esperança que o
Papa Francisco tenha o bom senso e a coragem de rever a muito infeliz e, aos
olhos de muitas teólogas e teólogos, frágil, porque muito mal fundamentada,
encíclica de 1968, subscrita por Paulo VI, Humanae Vitae. Aí se
faz uma distinção entre métodos contraceptivos "naturais" e outros
"artificiais", impondo o uso dos "naturais". É sabido que
uma forte maioria do grupo de trabalho nomeado primeiro pelo Papa João XXIII e
depois alargado por Paulo VI, concluiu que todos os métodos ‘iludem a
natureza’, incluindo os chamados naturais – porque estes usam o estratagema de
identificar os tempos inférteis da mulher para só nesses períodos poder haver
relações sexuais; e o sensus fidelium rejeitou de tal modo as
prescrições da encíclica que hoje em dia, no mundo ocidental, cerca de 95% dos
católicos praticantes consideram-nas inaceitáveis e ignoram-nas, usando
qualquer método em boa consciência, porque entenderam que o que de facto
importa é ser responsável na parentalidade, quer da parte materna quer paterna.
São seguidos nessa opinião pela grande maioria do clero, das religiosas e até
de muito episcopado que, repetidamente, tem solicitado ao Vaticano a revisão
desta encíclica, que tanto tem minado a autoridade eclesiástica. É mais do que
sabido que apenas alguns membros de organizações ultratradicionalistas seguem
estas orientações. Estão no direito de o fazer – não estão no direito de as
impor aos outros.
Mas essa não aceitação dos princípios da encíclica já
não ocorre nos países em desenvolvimento, onde o clero ainda detém alguma
autoridade sobre as consciências (de que as Filipinas são um exemplo muito
claro) e é por isso que temos de continuar a preocupar-nos com os imensos danos
que este pensamento obscurantista, temente do prazer da sexualidade, criada por
Deus, tem tido na saúde das mulheres e, consequentemente, das crianças e na
família em geral.
Aliás as Filipinas podem ser consideradas um caso de
estudo – pois a maior parte das autoridades eclesiásticas que o Papa teve agora
que encarar (e até criticar nalguns aspectos), tem tido um papel muito negativo
na busca de um desenvolvimento sustentável para toda a população. Justamente no
campo do planeamento familiar o poder da Igreja masculina e autoritária impediu
que naquele país, durante décadas, o Estado proporcionasse cuidados de saúde
reprodutivos às mulheres e às famílias, contribuindo assim objectivamente para
que milhares de crianças vivam na rua, sujeitas a serem prostituídas e traficadas,
como evidenciaram as lágrimas de Glyzelle.
A poucos meses do Sínodo da Família, é tempo dos
crentes encararem esta questão com seriedade, à luz do bom senso e dos
Evangelhos – o próprio Papa no avião de regresso de Manila, apesar de ter
reafirmado o seu apoio, em termos genéricos, à encíclica, afirmou que os
cristãos não têm que "fazer crianças em série", nem se comportarem em
termos reprodutivos "como os coelhos" e que a responsabilidade
parental era um valor grande. Quantas vezes a Igreja, na sua história, se viu
obrigada a rever posições e a pedir desculpas pelos seus pecados? Chegou agora
o momento de o fazer com a contracepção, não lhe cabendo fazer doutrina sobre a
matéria, que em nada consta nas propostas de Jesus.
Membro do Movimento Internacional Nós Somos Igreja-Portugal
Ana Vicente
28/01/2015 - 01:47 (in Público)
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