Ficamos mais seguros sem o Charlie
Luís Pedro Nunes
09/01/2015 - 01:52 (in Público).
Quando isto acalmar, as
instalações do Charlie Hebdo (CH) fecharem e o luto estiver feito, não
estaremos muito melhores sem as chatices que eles armavam?
É que bem vistas as coisas – e eu li insinuações
destas – não é que eles “merecessem” morrer mas estavam a puxar “más vibrações”
ao gozar com as crenças dos outros? Bom, arrisco mais: alguém vai sentir falta
“daquilo”? Havia quem se lembrasse que existiam sem ser quando criavam
problemas? Não estaríamos todos mais seguros sem o CH?
Não é humorista quem quer. Muito menos da escola do
CH. Eu não sou humorista. Sou jornalista. Isso tem essencialmente a ver com uma
estratégia mental ao nível quase instintivo. Quando se gere uma equipa de
humoristas fica-se chocado com o potencial suicida do material que produzem. O
humorista centra-se apenas no primado da “piada” e de ter “acertado” e há uma
quase total despersonalização das consequências. Alguém disse que o diretor do
CH era uma criança grande. E acredito. Mas é este tipo de “alienação” levada a
um espírito de “missão” contra os poderes instituídos que fazem de alguns
humoristas tipos raros. Muito raros. Não é humorista quem quer. Mesmo que saiba
desenhar ou representar.
Não se é humorista de um momento para o outro. E
estou a pensar no CH. Muito poucos têm a capacidade de desconstruir a realidade
instituída que temos como certa e nos devolver simplificada e ridicularizada –
como nunca pensámos que ela podia ser. E talvez até seja. E não será? É mesmo!
Mas voltemos à questão. Ali estávamos, em Paris,
comprávamos as nossas revistas de moda, carros e política, e olhávamos de
soslaio para a capa do CH, que trazia uma profanidade religiosa desenhada
alarvemente e franziamo-nos e obviamente não comprávamos. Curiosamente, o seu
objectivo estava de alguma forma cumprido.
O CH é, era, sempre foi um teste à tolerância
pessoal e das instituições democráticas. Até que ponto aguentamos ser
provocados nos nossos “proibidos”, nos nossos “sagrados”? O CH tinha uma missão
que ainda não fomos capazes de lhe reconhecer: o de ir monitorizar as nossas
próprias barreiras mentais.
E aqui podemos parar um pouco para ver se esta
frase pomposa faz algum sentido. Por mais livres que pretendamos ser, por mais
imunes às pressões, há a inevitabilidade de, dentro de nós, serem construídos
muros e de começarmos a tratar por igual o que é diferente ou diferente o que é
igual. Os últimos anos têm sido tremendos nesse aspecto. E por vezes não nos
apercebermos. São as alterações na linguagem devido ao politicamente correto e
que alteram o ângulo como olhamos a realidade (para o bem e para o mal). São as
hesitações que temos quando tratamos temas referentes ao profeta e ao Islão –
sim, não é o mesmo que “gozar” com Jesus.
O CH testava-nos. Ia ao núcleo íntimo dos
proibidos. Dos novos e dos velhos tabus. E por isso era acusado de ser tudo e o
seu oposto: racista e homofóbico, anti-religioso e anti-direita,
anti-extremista e anti-anti. O prazer jocoso profano, iconoclasta e desafiador
permitia que sentíssemos o pulso dos nossos novos temores. E dos mais calcados.
Era natural que se detestasse o CH. Hoje não nos lembramos das vezes que nos
arrepiámos ao abrir o CH e só depois assimilámos. Era “epá... ai ai ahahaha”. Saltar
do choque para o riso define a nossa capacidade de não ir atrás de ninguém
cortar cabeças.
Aquela gente – aqueles loucos de Paris – desenhavam
os medos burgueses há 45 anos. Atacavam as regras, o poder e as opressões das
instituições. Ajudavam a que nós nos percebêssemos. Essencialmente quando
ficávamos chocados. Tínhamos mudado. Ao desafiar os radicais islâmicos estavam
a fazer o que faziam desde sempre. A lembrar-nos que estamos com medo.
Precisamos deles? É preciso responder?
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:)
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