«Mas
quem é que caminha a teu lado?». Quando me reencontro com esta pergunta,
trazida por um verso de T.S. Eliot, penso quase sempre nos amigos. Um amigo,
por definição, é alguém que caminha a nosso lado, mesmo se separado por
milhares de quilómetros ou por dezenas de anos. O longe e a distância são
completamente relativizados pela prática da amizade. De igual maneira o
silêncio e a palavra. Um amigo reúne estas condições que parecem paradoxais:
ele é ao mesmo tempo a pessoa a quem podemos contar tudo e é aquela junto de
quem podemos estar longamente em silêncio, sem sentir por isso qualquer
constrangimento. Tenho amigos dos dois tipos. Com alguns, sei que a nossa
amizade se cimenta na capacidade de fazer circular o relato da vida, a partilha
das pequenas histórias, a nomeação verbal do lume mais íntimo que nos alumia.
Com outros, percebo que a amizade é fundamentalmente uma grande disponibilidade
para a escuta, como se aquilo que dizemos fosse sempre apenas a ponta visível
de um maravilhoso mundo interior e escondido, que não serão as palavras a
expressar.
O
modo como uma grande amizade começa é misterioso. Podemos descrevê-lo como um
movimento de empatia que se efetiva, um laço de afeição ou de estima que se
estreita, mas não sabemos explicar como é que ele se desencadeia. Irrompe em
silêncio a amizade. Na maior parte das vezes quando reconhecemos alguém como
amigo, isso quer dizer que já nos ligava um património de amizade, que nos dias
anteriores, nos meses anteriores, como escreveu Maurice Blanchot, «éramos
amigos e não sabíamos».
Aquilo
de que uma amizade vive também dá que pensar. É impressionante constatar como
ela acende em nós gratas marcas tão profundas com uma desconcertante simplicidade
de meios: um encontro dos olhares (mas que sentimos como uma saudação trocada
entre as nossas almas), uma qualidade de escuta, o compartilhar mais breve ou
demorado de uma mesa ou de uma conversa, um compromisso comum num projeto, uma
qualquer ingénua alegria…A linguagem da amizade é discreta e ténue. E ao mesmo
tempo é inesquecível e impressiva.
Há
aquele ditado que diz: «viver sem amigos é morrer sem testemunhas». A diferença
entre os conhecidos e os amigos é a mesma que distingue um ocasional espectador
daquele que está habilitado a testemunhar. Este último disponibiliza-se
realmente a ser presença. Se tivesse de resumir a sua natureza, apetecia-me
dizer: um amigo é alguém que foi capaz de olhar, mesmo que por um segundo
apenas, o fundo da nossa alma e transporta depois consigo esse segredo, da
forma mais gratuita e inocente. E nós retribuímos o mesmo. Em dois ou três
poemas de Adília Lopes sublinhei, há tempos, isso. No idioma da poesia de
Adília, a amizade era descrita assim: «busquei o amor sem ironia». A amizade,
mesmo quando nos fartamos de rir e de alegrar com os outros, é esse
transparente amor.
Tenho
por uma grande verdade, aquilo que escreveu o filósofo Paul Ricoeur: «para ser
amigo de si próprio é necessário ter já vivido uma relação de amizade com
alguém».
José Tolentino de
Mendonça
In Diário Notícias (Madeira)
21.11.2010
Fontes: http://www.snpcultura.org/paisagens_a_amizade.html
In Diário Notícias (Madeira)
21.11.2010
Fontes: http://www.snpcultura.org/paisagens_a_amizade.html
3 comentários:
Um lindo hino à amizade,onde podemos lembrar o outro hino de Coríntios,dado o que têm de comum...
Bom dia no Pai...
Sim, gostei tb muito dele... Tolentino escreve coisas muito bonitas e com sumo...
Como vai a saúde? Espero e oro pela sua recuperação... a minha aos soluiços, ora nada, ora apertos, aquele malfadado tubo adora saltitar... risos... bom, confiemos..
Nele que nos abraça a todos...
Tb tenho uns pontinhos pretos a saltitar no olho operado...mas incomodam, certamente, muito menos que o seu tubo....boas e rápidas melhoras !
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