“A missão de Francisco é renovar o estilo de convivência e de governo”. Entrevista com Andrés Torres Queiruga
O prestigiado teólogo galego, Andrés Torres Queiruga, em entrevista concedida à revista italiana L’Altrapagina, assegura que começa uma nova etapa na Igreja. Do Papa Francisco
não espera tanto reformas concretas, mas, sobretudo, reformas
relacionadas à “reforma” da “renovação evangélica do estilo de
convivência e de governo” na Igreja. Ou seja, “recuperar a liberdade da
teologia”, redefinir a relação entre “moral e religião” e retomar o
“impulso do Vaticano II”.
A entrevista é de Achille Rossi e publicada por Religión Digital, 29-04-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A eleição do Papa Francisco fez surgir muitas esperanças dentro do povo cristão, sobretudo por suas atitudes fora do protocolo e por sua contínua atenção aos pobres. Estes sinais autorizam a pensar que está começando uma nova estação para a Igreja católica?
Me parece indubitável. Os gestos não são casualidade: respondem, por um lado, à atitude pessoal de um bispo que os havia convertido em estilo central, tanto da sua vida como de seu trabalho pastoral, e, por outro, em necessidade objetiva da Igreja. Necessidade tão urgente, que cabe dizer que o conclave o nomeou tendo diante de si esta renovação como um de seus principais objetivos.
Quais são, na sua opinião, os problemas mais urgentes enfrentados pelo corpo eclesial neste início do segundo milênio?
Tenho a impressão de que a função – o destino providencial? – deste Papa, mais que solucionar problemas concretos consistirá em trabalhar por uma reforma da comunidade eclesial, renovando evangelicamente o estilo de convivência e de governo, em um sentido mais participativo, dialogante e descentralizado. Isso criará então a condição de possibilidade para enfrentar as reformas concretas. Estas virão depois, com este papa ou com o seguinte ou os seguintes. Seguramente, Francisco empreenderá algumas, apoiadas em uma profunda reestruturação e limpeza da Cúria; devolverá muita iniciativa às Conferências Episcopais e às Igrejas locais; redefinirá o lugar da mulher na Igreja (ou começará a redefini-lo); e mudará o acento do anúncio do Evangelho, abandonando um moralismo privatista e não atualizado, para insistir na luta contra a pobreza, a discriminação e a injustiça. Creio que em boa medida o conseguirá, e não seria pouca coisa.
Em sua primeira alocução aos cardeais, o Papa Bergoglio convidou-os para “confessar Cristo”, caso contrário a Igreja se reduziria a uma espécie de ONG dedicada à assistência. O que significa hoje, em um mundo como o nosso, “confessar Cristo”?
O Papa anterior era um teólogo; o atual, um pastor. Creio que sua “confissão de Cristo” não vai consistir em promover uma renovação teórica da cristologia, mas no anúncio e na prática de um estilo de vida decididamente evangélico: o de Jesus de Nazaré, centrado, por um lado, na confiança em Deus como amor e perdão e, por outro, no serviço humilde e fraterno, começando de baixo para cima, pelos mais pobres e necessitados. Uma confissão centrada no testemunho prático mais que na renovação teórica. Embora esteja seguro de que, caso consiga e justamente por isso, influirá muito na renovação teológica.
Você é um teólogo de profissão. Por quais caminhos deveria encaminhar-se a teologia para falar à cultura contemporânea e para renovar a própria linguagem?
O primeiro caminho é, digamos, estrutural: recuperar a liberdade e a criatividade da teologia, retomando o impulso – fortemente freado nos últimos tempos – do Vaticano II, sem medo do pluralismo e sem se assustar com os possíveis riscos de qualquer busca criativa e renovadora. Sobre essa base será necessário ir assumindo com plena consequência a mudança cultural, sobretudo – insisto uma vez mais no apelo conciliar – reconhecendo a “autonomia” da criação e reformulando a partir dela a compreensão das verdades fundamentais da fé. Assinalaria como algumas das tarefas mais urgentes e radicais: reformular o esquema da história da salvação, vendo-a como crescimento da criatura, frágil, débil e pecadora, mas sustentada pelo amor incansável de um Deus sempre ao nosso lado contra o mal, evitando, portanto, prosseguir mantendo uma dialética de queda original como fato histórico, com todo o horror do mal em consequência de um castigo imposto por Deus. Redefinir as relações entre a moral e a religião, evitando uma sangria de abandonos da Igreja devido a uma confusão entre a autonomia humana em relação às normas (comuns em princípio a crentes e não crentes) e a motivação, fundamentação e apoio divino em relação ao seu cumprimento. Recuperar a humanidade de Jesus Cristo como modelo e revelação da mais radical e autêntica humanidade. E, em geral, repensar todas as grandes verdades a partir da nova situação cultural, no diálogo com as religiões e com o pensamento secular.
A escolha do nome Francisco é todo um programa. Contém, na sua opinião, também uma mensagem crítica diante das políticas econômicas que hoje são impostas aos países mais frágeis, seja na Europa, seja no resto do mundo?
É inegável. Basta repassar o fio condutor da pregação pública do bispo Bergoglio, sempre clara e contundente a este respeito. Os gestos surpreendentes do Papa Francisco são expressão e confirmação dessa preocupação central. Preocupação evangélica e, por isso, profundamente humana. Preocupação que encantará com segurança a compreensão e a acolhida de uma humanidade sedenta deste tipo de mensagem e compromisso.
Pensa que Francisco reavivará na Igreja o clima do Concílio Vaticano II?
Parece-me que sim. Após trinta anos de reserva, parece estar em marcha um reencontro com o impulso e o apelo do Vaticano II. Com um estilo diferente, há nele muitos traços que lembram João XXIII. Neste sentido, permita-me dizer que de todos os gestos recentes – inclusive o magnífico gesto da renúncia de Bento XVI – o mais revolucionário foi o inicial e espontâneo do Papa na sua primeira aparição pública: pedir a bênção dos fiéis antes de dar a bênção a eles e a elas. Na mentalidade eclesiológica anterior isto era simplesmente impensável. Mas o novo Papa não fez mais que tomar a sério a Lumen Gentium: a Igreja é antes de tudo e sobretudo a comunidade de todos os fiéis e dentro dela – não sobre ela – os diversos serviços, inclusive, evidentemente, também o papal.
Esta renovação será possível durante o seu pontificado?
Volto à minha opinião inicial. Estamos diante de um Papa pastor, não de um Papa teólogo. Com isto não quero dizer, está claro, que ele desconheça a teologia, mas que não se especializou no estudo sistemático da mesma. Seu decidido compromisso com um estilo evangélico e sua atitude de centrar a autoridade no serviço, constituem a melhor base para que não caia na tentação de não distinguir com cuidado entre carismas e funções. Refiro-me à tendência da autoridade pastoral de absorver o carisma teológico, sem diferenciar entre os campos e as competências; algo que, certamente, em princípio, o Concílio reconheceu e que os dois últimos Papas acentuaram, falando da necessidade do diálogo e apoio fraternos entre os diferentes serviços eclesiais.
Na minha opinião, será decisiva a atitude que Francisco adotar diante do atual monopólio de uma teologia rigidamente submetida ao critério do Catecismo da Igreja Católica, uma grande obra de erudição, mas com uma teologia pouco concreta e claramente unilateral. Obra, portanto, respeitável, enquanto se limita a representar uma das possíveis orientações dentro da teologia atual; mas que não pode ser apresentada como a única orientação legítima, não distinguindo com cuidado entre magistério pastoral e magistério teológico. Porque, desse modo, corre-se o gravíssimo perigo de invadir autoritariamente o campo estritamente teológico, identificando as interpretações apoiadas em uma determinada teologia com a fé universal da Igreja. Dito a modo de exemplo concreto e ilustrativo: para qualquer um é legítimo seguir a teologia de Urs von Balthasar, mas não pode estar proibido a ninguém orientar-se mais pela teologia de Karl Rahner. Talvez neste ponto, aparentemente secundário, esteja uma das questões decisivas do presente pontificado.
In UHU
A entrevista é de Achille Rossi e publicada por Religión Digital, 29-04-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A eleição do Papa Francisco fez surgir muitas esperanças dentro do povo cristão, sobretudo por suas atitudes fora do protocolo e por sua contínua atenção aos pobres. Estes sinais autorizam a pensar que está começando uma nova estação para a Igreja católica?
Me parece indubitável. Os gestos não são casualidade: respondem, por um lado, à atitude pessoal de um bispo que os havia convertido em estilo central, tanto da sua vida como de seu trabalho pastoral, e, por outro, em necessidade objetiva da Igreja. Necessidade tão urgente, que cabe dizer que o conclave o nomeou tendo diante de si esta renovação como um de seus principais objetivos.
Quais são, na sua opinião, os problemas mais urgentes enfrentados pelo corpo eclesial neste início do segundo milênio?
Tenho a impressão de que a função – o destino providencial? – deste Papa, mais que solucionar problemas concretos consistirá em trabalhar por uma reforma da comunidade eclesial, renovando evangelicamente o estilo de convivência e de governo, em um sentido mais participativo, dialogante e descentralizado. Isso criará então a condição de possibilidade para enfrentar as reformas concretas. Estas virão depois, com este papa ou com o seguinte ou os seguintes. Seguramente, Francisco empreenderá algumas, apoiadas em uma profunda reestruturação e limpeza da Cúria; devolverá muita iniciativa às Conferências Episcopais e às Igrejas locais; redefinirá o lugar da mulher na Igreja (ou começará a redefini-lo); e mudará o acento do anúncio do Evangelho, abandonando um moralismo privatista e não atualizado, para insistir na luta contra a pobreza, a discriminação e a injustiça. Creio que em boa medida o conseguirá, e não seria pouca coisa.
Em sua primeira alocução aos cardeais, o Papa Bergoglio convidou-os para “confessar Cristo”, caso contrário a Igreja se reduziria a uma espécie de ONG dedicada à assistência. O que significa hoje, em um mundo como o nosso, “confessar Cristo”?
O Papa anterior era um teólogo; o atual, um pastor. Creio que sua “confissão de Cristo” não vai consistir em promover uma renovação teórica da cristologia, mas no anúncio e na prática de um estilo de vida decididamente evangélico: o de Jesus de Nazaré, centrado, por um lado, na confiança em Deus como amor e perdão e, por outro, no serviço humilde e fraterno, começando de baixo para cima, pelos mais pobres e necessitados. Uma confissão centrada no testemunho prático mais que na renovação teórica. Embora esteja seguro de que, caso consiga e justamente por isso, influirá muito na renovação teológica.
Você é um teólogo de profissão. Por quais caminhos deveria encaminhar-se a teologia para falar à cultura contemporânea e para renovar a própria linguagem?
O primeiro caminho é, digamos, estrutural: recuperar a liberdade e a criatividade da teologia, retomando o impulso – fortemente freado nos últimos tempos – do Vaticano II, sem medo do pluralismo e sem se assustar com os possíveis riscos de qualquer busca criativa e renovadora. Sobre essa base será necessário ir assumindo com plena consequência a mudança cultural, sobretudo – insisto uma vez mais no apelo conciliar – reconhecendo a “autonomia” da criação e reformulando a partir dela a compreensão das verdades fundamentais da fé. Assinalaria como algumas das tarefas mais urgentes e radicais: reformular o esquema da história da salvação, vendo-a como crescimento da criatura, frágil, débil e pecadora, mas sustentada pelo amor incansável de um Deus sempre ao nosso lado contra o mal, evitando, portanto, prosseguir mantendo uma dialética de queda original como fato histórico, com todo o horror do mal em consequência de um castigo imposto por Deus. Redefinir as relações entre a moral e a religião, evitando uma sangria de abandonos da Igreja devido a uma confusão entre a autonomia humana em relação às normas (comuns em princípio a crentes e não crentes) e a motivação, fundamentação e apoio divino em relação ao seu cumprimento. Recuperar a humanidade de Jesus Cristo como modelo e revelação da mais radical e autêntica humanidade. E, em geral, repensar todas as grandes verdades a partir da nova situação cultural, no diálogo com as religiões e com o pensamento secular.
A escolha do nome Francisco é todo um programa. Contém, na sua opinião, também uma mensagem crítica diante das políticas econômicas que hoje são impostas aos países mais frágeis, seja na Europa, seja no resto do mundo?
É inegável. Basta repassar o fio condutor da pregação pública do bispo Bergoglio, sempre clara e contundente a este respeito. Os gestos surpreendentes do Papa Francisco são expressão e confirmação dessa preocupação central. Preocupação evangélica e, por isso, profundamente humana. Preocupação que encantará com segurança a compreensão e a acolhida de uma humanidade sedenta deste tipo de mensagem e compromisso.
Pensa que Francisco reavivará na Igreja o clima do Concílio Vaticano II?
Parece-me que sim. Após trinta anos de reserva, parece estar em marcha um reencontro com o impulso e o apelo do Vaticano II. Com um estilo diferente, há nele muitos traços que lembram João XXIII. Neste sentido, permita-me dizer que de todos os gestos recentes – inclusive o magnífico gesto da renúncia de Bento XVI – o mais revolucionário foi o inicial e espontâneo do Papa na sua primeira aparição pública: pedir a bênção dos fiéis antes de dar a bênção a eles e a elas. Na mentalidade eclesiológica anterior isto era simplesmente impensável. Mas o novo Papa não fez mais que tomar a sério a Lumen Gentium: a Igreja é antes de tudo e sobretudo a comunidade de todos os fiéis e dentro dela – não sobre ela – os diversos serviços, inclusive, evidentemente, também o papal.
Esta renovação será possível durante o seu pontificado?
Volto à minha opinião inicial. Estamos diante de um Papa pastor, não de um Papa teólogo. Com isto não quero dizer, está claro, que ele desconheça a teologia, mas que não se especializou no estudo sistemático da mesma. Seu decidido compromisso com um estilo evangélico e sua atitude de centrar a autoridade no serviço, constituem a melhor base para que não caia na tentação de não distinguir com cuidado entre carismas e funções. Refiro-me à tendência da autoridade pastoral de absorver o carisma teológico, sem diferenciar entre os campos e as competências; algo que, certamente, em princípio, o Concílio reconheceu e que os dois últimos Papas acentuaram, falando da necessidade do diálogo e apoio fraternos entre os diferentes serviços eclesiais.
Na minha opinião, será decisiva a atitude que Francisco adotar diante do atual monopólio de uma teologia rigidamente submetida ao critério do Catecismo da Igreja Católica, uma grande obra de erudição, mas com uma teologia pouco concreta e claramente unilateral. Obra, portanto, respeitável, enquanto se limita a representar uma das possíveis orientações dentro da teologia atual; mas que não pode ser apresentada como a única orientação legítima, não distinguindo com cuidado entre magistério pastoral e magistério teológico. Porque, desse modo, corre-se o gravíssimo perigo de invadir autoritariamente o campo estritamente teológico, identificando as interpretações apoiadas em uma determinada teologia com a fé universal da Igreja. Dito a modo de exemplo concreto e ilustrativo: para qualquer um é legítimo seguir a teologia de Urs von Balthasar, mas não pode estar proibido a ninguém orientar-se mais pela teologia de Karl Rahner. Talvez neste ponto, aparentemente secundário, esteja uma das questões decisivas do presente pontificado.
In UHU
3 comentários:
Bom dia...
Já tinha lido antes... mas é sempre bom reler...
Santo Domingo com comunhão tb todas as Mães...
As mães presentes lembram e evocam com carinho as já ausentes (do olhar, apenas)que nos precederam no Encontro, as futuras mães, e as mães que, não o sendo pela via biológica, o são pelo enorme coração que abriga e se preocupa com os orfãos do amor e/ou da abundância. Que em todas possamos reconhecer o rosto materno de Deus...
Lila
deixei em cima uma homenagem..
Beijus na alma Irmã Lila... e ao ninho...
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