Decidir-se a ser livre
A Palavra de Deus
Joel 2, 12-13
Mas agora, diz o SENHOR, convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas, com gemidos.
Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao SENHOR, vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia
Assim se exprimia, cerca de 400 anos antes de Cristo, o profeta Joel. As circunstâncias são dramáticas : uma « catástrofe natural » abateu-se sobre a terra de Israel, uma invasão de gafanhotos que devora sem descanso as colheitas. Sentem-se totalmente impotentes, desencorajados, desesperados, a prova de uma incompreensível e irresistível devastação que parece dever arruinar toda a esperança no futuro.
De uma forma ou de outra, é numa situação e em circunstâncias idênticas que se encontra hoje cada um de nós – neste preciso dia em que escolhemos entrar em Quaresma, de seguir os passos dAquele que se pôs a caminho com uma força e uma lucidez surpreendente para a “catástrofe” da Paixão, para ser Ele mesmo o joguete de forças de morte e destruição do qual será finalmente vencedor. Se entramos na Quaresma, não é porque reconhecemos que há qualquer coisa de catrastófico na nossa vida, alguma coisa de que apenas “o Senhor nosso Deus” saberá salvar-nos?”
É de catástrofes “ maiores”, como aquela que se abate sobre o povo a quem se dirige Joel ; mas uma catástrofe não é “maior” senão pela acumulação de pequenas catástrofes: nem que seja em definitivo a vida e a morte, a infelicidade e a felicidade, a alegria e o sofrimento, que ganham e estabelecem o seu reino, de trevas ou de luz, o que tem importância real na medida em que implica em vida de felicidade das pessoas singulares que somos. Todos e cada um, somos feitos, sabemo-lo, para a vida, a felicidade e alegria, e seria uma catástrofe insuportável que o mais pequeno de entre nós - «o mais pequeno de entre os meus», diria Deus- pudesse vir a tornar-se definitivamente privado delas. E no entanto, porque nós não nos sentimos plenamente protegidos de uma tal catástrofe, porque ela já nos atingiu, mais ou menos profundamente, mais ou menos dramaticamente, a nós ou aos que nos são próximos, que a mensagem do profeta, a mensagem da Quaresma, nos é dirigida.
Quer seja por nossa culpa (os nossos erros, as nossas cegueiras, as nossas faltas de coragem) mais ou menos por nossa culpa (como é por vezes difícil ver claramente neste particular!) não ver de forma nenhuma a nossa falta (todo o mal que nos bate à porta quando “nem fazemos por isso”), sabemos que o mal, o sofrimento e a morte são, de uma certa forma, constantemente vigiando a vida, a nossa vida. É exactamente nestas circunstâncias que o profeta nos grita : « volta para o Senhor teu Deus!».
“Voltar para o Senhor” será um escape, uma fuga, ou uma solução simplista diante dos problemas ou situações complexas? Não: é mais uma solução radical no que há de radical em toda a situação em que existe em definitivo vida e morte de alguém. “Fazer penitência” não significa dever convencer-se que “é tudo culpa minha”, de que eu não passo de um pecador aos olhos de Deus, que não há outro caminho na vida senão o da “mortificação”... Mas também não é exactamente o extremo inverso: convencer-me que nada do que releva a minha responsabilidade pessoal não possa estar em jogo na situação de impasse, na situação de morte, que me faz hoje- apesar de tudo!- voltar para Deus. A Quaresma é antes do mais uma apelo à nossa liberdade. À nossa liberdade mais profunda.
A minha liberdade mais profunda é inextrincavelmente feita do conhecimento da grandeza incomensurável de Deus, da minha grandeza também incomensurável de filho de Deus – de ter sido criado « à imagem e semelhança » de Deus -, mas também do que me separa, do que me afasta de Deus, quer eu seja ou não directamente responsável por isso. A Quaresma chama-me portanto, também, à lucidez : devo comprometer-me a tentar fazer distinção entre o mal que faço, o mal que me faço, e o mal que talvez eu esteja sofrendo – tudo isto, antes do mais, à luz do verdadeiro último desafio que dá o seu sentido a toda a conversão: o horizonte da felicidade absoluta que Deus deseja para todo o homem, e que no fundo não reside em parte alguma para além d’Ele.
Mesmo se todo o mal que me atinge não releva certamente o meu pecado, existe pecado em mim: uma forma ou outra de recusa do amor que Deus me traz e do bem que Ele me quer ; todo o bem que eu quero e faço, por outro lado, posso estar seguro que se ele vem de mim, vem também de Deus, e que Deus quer concretizar, trazê-lo a esta plenitude sem a qual nós sabemos que algum bem nos satisfará jamais!
Eis, porquê, no meio de toda a catástrofe, o que grita o profeta : « volta para Deus ! Decide-te sobre o essencial: decide-te a ser livre e lúcido sobre ti próprio face a Ele ! Ele não cessa de te ter sobre o seu olhar, de te amar e de te esperar !».
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