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sábado, 18 de julho de 2009

A caridade na verdade: primeiras impressões


A caridade na verdade: primeiras impressões





Luiz Alberto Gómez de Souza *

Adital -

Esta encíclica de Bento XVI quer ligar-se diretamente à outra encíclica de Paulo VI, "Populorum Progressio", de 1967, que considera a "Rerum Novarum" da época contemporânea e toda a primeira parte é dedicada a ela. Porém não quer apenas repetir - ainda que o faça de maneira longa demais. Fala de "um único ensinamento coerente e simultaneamente novo" (12). Vê uma dimensão histórica no "patrimônio" da doutrina social da Igreja, para enfrentar novos problemas que não existiam ainda tão nítidos na fase imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II.

Nisso parece seguir a idéia do teólogo inglês J.H. Newman, que o papa estima particularmente, sobre o desenvolvimento da doutrina, que se refaz no tempo e vai mudando. Assim há "coisas novas": novo contexto econômico comercial e financeiro internacional, em grande crise em nossos dias (24), novos problemas com os fluxos migratórios (21,62), mobilidade laboral associada à desregulamentação(25), aspectos novos do desemprego (25), o problema dos recursos energéticos não renováveis (49), a interação das culturas com a globalização (26). Indica como os Estados-nação são ultrapassados por essa globalização.

Na linha do que João XXIII indicou na "Pacem in Terris", acena para uma autoridade política mundial no futuro (67), na interdependência mundial (33), mas vê os riscos de novas formas de colonialismo e dependência (33) e o perigo de um poder universal monocrático, sem as dimensões da subsidiariedade, da descentralização e da democracia (57). Refere-se a um quadro de desenvolvimento policêntrico, onde pode crescer a riqueza mas aumentam as desigualdades (22).

Mas é um longo documento, muitas vezes repetitivo e exageradamente referido a outros atos do magistério dos últimos papas, de leitura necessariamente lenta, com a ânsia de tratar de tudo e com afirmações muitas vezes ditas maneira absoluta. Entra em contradição com a dimensão histórica referida anteriormente, e em casos como os da reprodução, apenas repete o tradicional. Talvez isso se deva à inversão que propõe entre caridade e verdade. São Paulo, na Epístola aos Efésios, fala de "verdade na caridade" (Ef. 4,15): seria na relação entre as pessoas que iria se desocultando a verdade.

Bento XVI vê a relação em sentido contrário, a caridade brotando de uma verdade que lhe é anterior e de certa maneira fixa. Isso vai dificultar o diálogo com não católicos, ao qual nos referiremos mais adiante e há uma dimensão de certa onipotência, num magistério mais inclinado a saber do que a escutar. Isso tem muito a ver com a maneira de pensar do atual papa, que tem horror aos riscos do relativismo e fica num plano teórico e doutoral, muito mais do que pastoral.

Talvez tivesse sido melhor um texto mais curto, com interrogações abertas e pistas de ação nesse campo da justiça social e da caridade, de fácil acesso às comunidades cristãs. Mas o estilo da encíclica é um hábito neste tipo de documento e inclusive nas "orientações" dos episcopados. Particularmente, este papa fala mais como teólogo do que como pastor.

Na área da sexualidade e da reprodução repete o que vem de Paulo VI na "Humanae Vitae" e de João Paulo II. Tem uma atitude de defesa diante das "delicadíssimas" questões de reprodução in vitro, clonagem, eutanásia, investigações com células-tronco (51) e uma crítica, com certa dose de razão, ao hedonismo e à sexualidade apenas como fonte de prazer (44). Mas também, na linha que percorre todo o documento, de não querer simplificar, poderia ter, além disso, se referido aos aspectos positivos do prazer e da sexualidade amorosa como alteridade.

Indica que a Igreja não tem soluções técnicas, mas aponta orientações e tenta iluminar a realidade (13). Nesse sentido, em frases às vezes perdidas num contexto demasiado totalizador, traz afirmações interessantes. Assim, vai valorizar a sociedade civil (24) e tem parágrafos muito ricos sobre o dom e a gratuidade: "O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência" (34).

Também se refere à saúde ecológica da terra (32) e à democracia econômica (38). Indica que, mais além da relação privado e estatal, há experiências de economia solidária na sociedade civil (39), que chama de "organizações produtivas que perseguem fins materialistas e sociais", além de lógica do lucro (38). Insiste numa orientação personalista e comunitária (42) e me faz pensar aí em Emmanuel Mounier.

Ao mesmo tempo em que fala de um "humanismo cristão" e da necessidade de toda a realidade estar iluminada por Deus, vai reconhecer que "outras culturas e outras religiões ensinam a fraternidade e a paz", criticando ao mesmo tempo o sincretismo e as crenças mágicas (55). Mas, o que é importante, chama a "unir esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade de outras religiões e não crentes" (57).

Há uma interessante observação entre razão e fé: "a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência, enquanto a fé sem razão corre o risco de alheamento da vida concreta das pessoas" (74).

Vale notar que em nenhum momento se refere ao sistema capitalista, mas aos problemas mais fundamentais do mercado, que para Bento XVI tem elementos positivos e negativos: "deixado unicamente ao princípio da equivalência do valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar coesão social" (35). Também afirma que não existe o mercado em estado puro (36). Mas um mercado que só busca o lucro e aumenta as desigualdades não está na lógica do capitalismo atual? Como ir além, na busca de outras relações de produção que não as do sistema vigente? Talvez o documento considere que isso são indicações técnicas e queira ficar ao nível das grandes orientações. Mas é interessante que se coloca, na prática, em direção contrária a uma teologia da prosperidade, das raízes do capitalismo e de uma mentalidade neoliberal.

Fala em evitar mecanismos funestos de uma civilização tecnológica globalizada. Insiste no princípio da subsidiariedade, que percorre todo o ensinamento social da Igreja, muito importante nestes tempos de mundialização, onde há que saber articular o local e o global. Vê as relações humanas em analogia com a Trindade, na unidade de um só Deus e na dimensão de relação entre as Pessoas trinitárias.

Enfim, garimpando o texto, encontramos elementos bastante relevantes. Faltaria, como disse antes, ao lado dele, um documento mais ágil, pastoral e curto, que levasse esse ensinamento e linhas de ação às comunidades dos fiéis, para não ficar circunscrito aos especialistas.

E os não católicos precisariam sentir que são realmente chamados ao "acordo entre crentes e não crentes" (79) e não postos diante de um discurso já pronto e totalizante. Nestes tempos de transição histórica, de novos paradigmas, de mudanças profundas e de um necessário pluralismo, essa atitude e esse estilo seriam da maior importância.


* Sociólogo, Diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência de Religião da Universidade Candido Mendes

2 comentários:

Maria-Portugal disse...

Outro olhar sobre a enciclica da autoria do Pe Anselmo Borges, no forum

andarilho disse...

só agora vou começar a "sério" a ler e a estudar esse tema, pq terei que dar partilhas-estudos aqui a grupos... depois falarei mais com conhecimento de causa... abraços em Cristo